O disco “Selvagem?”, d’Os Paralamas do Sucesso, lançado em
1986, não é um disco qualquer. Não pode ser colocado no balaio dos grandes
sucessos do Pop Rock brasileiro, tomando-se por base apenas seu marco
comercial. Ele vai além do sucesso de vendagem, afinal vendeu muito – mesmo
oferecendo algo novo, diferente. Não era o mais do mesmo, era algo novo, era
uma aposta, era um risco fazendo o que poderia não ter feito: sucesso.
Em “Cinema Mudo”, de 1983, e “O Passo do Lui”, de 1984,
Herbert Vianna (vocal e guitarra), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria),
muito jovens, com pouco mais de 20 anos, já mostravam todo seu potencial, tanto
no que se refere a fazer legítimos hinos pop – como “Vital e sua moto”, “Meu
Erro” e “Romance Ideal” – quanto nas referências a ritmos jamaicanos – vide a
própria “Cinema Mudo”, “Ska”, “Óculos” e “Assaltaram a gramática” –, o que
mostrava uma peculiaridade muito especial nos três. Embora o grupo de canções
que fugiam da lógica pop fosse, até o momento, bem menor, já dava ares das
novas perspectivas do grupo. Mas por que mudar, se estava tudo indo tão bem? Aí
entra em cena, em 1986, o disco “Selvagem?”, reflexo direto do amadurecimento
da banda.
Em 1985, com o fim institucional da ditadura e a abertura
política os ares eram de novidade, de esperança, de mudança. Para os Paralamas,
era um ano igualmente movimentado. Logo em janeiro, se apresentaram na primeira
edição do Rock in Rio, participação que foi fruto do sucesso dos dois primeiros
discos. O show foi muito bem recebido pela crítica e pelos fãs. Nos meses que
se seguiriam Os Paralamas sairiam pelo Brasil se apresentando em uma turnê bem
sucedida. Também em 1985, Os Paralamas do Sucesso vão para a Europa, para
alguns shows nos países “costumeiros” de toda turnê internacional. Contudo, o
retorno do trio é bem diferenciado dos outros artistas que estiveram juntos na
viagem. Antes de voltar ao Brasil, eles passam por alguns países da África e
também pela Jamaica. As viagens pelo terceiro mundo, um lugar de gente negra e
pobre, pareceu muito familiar aos diversos cantos do Brasil visitados pelos
músicos em sua turnê nacional, também em 85. Além disso, em 1984, a banda já
havia feito os shows de abertura da turnê brasileira do jamaicano Jymmy Cliff.
Tudo isso somou-se e, em 1986, veio “Selvagem?”, onde pesou a responsabilidade
típica de quando se faz o que se está afim de fazer, não com falta de
compromisso, mas, sim, sem respeitar as amarras do mercado fonográfico.
Dizem que quando foi apresentado à banda o riff de guitarra
que viria a ser “Alagados”, Bi e João acharam aquilo com cara de samba-enredo.
E isso é ruim? Não, eles adoraram. “Alagados” abre o disco avisando logo de
cara que as próximas horas serão bem diferentes. E boas.
O cunho social da
letra, muito evidente, é em partes fruto do período que Herbert estudou no Rio
de Janeiro e atravessava de ônibus diariamente a Favela da Maré. Depois, já
como uma banda de sucesso, conheceram Salvador, capital da Bahia e onde fica
Alagados, região periférica da cidade. Um pouco mais tarde, com ainda mais
sucesso na bagagem, conheceram Trenchtown, uma favela jamaicana nos subúrbios
de Kingston, capital da Jamaica e local onde nasceu Bob Marley. O Brasil, dessa
forma, parecia muito mais com a Jamaica, embora muitos tentassem e tentem até
hoje negar. São “os filhos da mesma agonia”.
O clipe da música, ousado, confirma tudo isso. O viés popular da vida
nas grandes cidades, em ritmo dançante que lembra o samba, convida a todos para
cantar as amarguras. Quando o refrão, com break, é sustentado pela batida de tamborins,
a evidência grita.
Na sequência vem “Teerã”, ska de características clássicas
(assim como muitos outros que virão adiante no disco). A letra faz referência à
capital iraniana e principalmente à guerra entre Irã e Iraque (1980 – 1988). O
processo traumático que representa uma guerra, principalmente para os civis, é
retratado na figura das crianças e o futuro de Teerã. A terceira faixa é “A
Novidade”, com letra de Gilberto Gil, que também canta em “Alagados”. O refrão,
que é até hoje muito popular, faz menção, novamente, aos desiguais do Brasil. A
literalidade forte diz tudo, dispensa explicações: “Oh mundo tão desigual/ Tudo
é tão desigual/ De um lado esse carnaval/ Do outro a fome total”.
A quarta música é uma composição de João Barone e Bi
Ribeiro. “Melô do Marinheiro” dividiu com “Alagados” a preferência nas rádios
em um processo espontâneo. Os fãs gostaram dela, pediram nas rádios e a
colocaram para tocar. Não tomou espaço da música de trabalho. Popularizou-se de
forma instintiva e virou mais um dos hits do disco. “Marujo Dub”, como o nome
já diz, é um Dub baseado na música anterior, o primeiro do disco que, corajoso,
já apresenta de cara dois dubs brasileiros às rádios. O segundo é “Teerã Dub”,
a última faixa do disco e, igualmente, uma versão de “Teerã”. Os ecos e efeitos
na voz saturada, típicos do Dub, assim como a “cara” de remix e a evidência do
baixo e da bateria acompanham ambas as faixas. Corajosos e arriscados, os dois
dubs são um dos vários marcos do disco.
A sexta faixa é “Selvagem”, música de conteúdo até hoje (quase
trinta anos depois) assustadoramente
atual. Nela a letra apresenta, novamente, uma crônica da vida no Brasil e as
armas que cada casta dispõe em mãos. Com riff marcante, o mais pesado do disco,
Herbert canta sobre a polícia e sua tentativa incansável de manter tudo em seu
lugar, custe o que custar. O governo, por sua vez, com seu falatório vazio e
seu controle absoluto do poder, construído na base da enganação, mostra a cara
de suas armas. Em “E a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard”,
faz-se referência à censura imposta pelo governo Sarney ao filme “Eu te Saúdo,
Maria” de Jean-Luc Godard. Na sequência, a cidade apresenta suas armas na forma
de mendigos e meninos de rua, enquanto os negros “a esperteza que só tem quem
tá cansado de apanhar”.
“A Dama e o
Vagabundo”, a primeira música do disco que traz como tema um relacionamento
amoroso. O, porém está no caráter desse relacionamento, que, apesar das
diferenças, dá certo. A oitava música é “There’s A Party”. Cantada em inglês, é
a que mais se aproxima do pop rock dos dois primeiros discos. Com pouco mais de
dois minutos, é a música mais curta. “O Homem”, nona música do disco, apresenta
como temática o conflito interior de cada um, colocando em cheque a costumeira
dualidade da vida. Questiona o bem e o mal e canta, nenhuma doutrina mais me
satisfaz.
A última música do
disco – afinal, “Teerã Dub” não foi incluída na versão original em LP – é uma
regravação de “Você/Gostava Tanto de Você”, clássicos de Tim Maia. Sucesso
garantido em um reggae que encerra a boa novidade que foi “Selvagem?”.
Definido o lado conceitual do disco, que já vinha sendo trabalhados
nos meses finais de 1985, Os Paralamas do Sucesso chamaram Liminha –
ex-baixista dos Mutantes e produtor de alguns dos mais aclamados discos do rock
brasileiro – para trabalhar a parte técnica. Pelas mãos de Liminha passaram
também algumas das segundas guitarras presentes no disco, assim como alguns
teclados. Estava garantida a referência técnica da produção, afinal, a
experimentação com os novos gêneros musicais deveria estar em excelente
qualidade sonora, bem mixada e produzida. Liminha deu conta do recado. Entraram
para as gravações em abril e não demoraram mais que um mês para terminar.
Para
a capa do disco foi escolhida uma foto do irmão de Bi que estava colada na
parede do local de ensaios. Nela, o jovem Pedro aparece sem camisa, usando-a ao
redor da cintura, como uma saia, e segurando um “cajado”. Um índio meio
estranho em um dos muitos acampamentos ainda com turma de Brasília, onde Bi e
Herbert se conheceram. A estranheza fica completa com o ponto de interrogação
que é acrescentado e pergunta: Selvagem?
Em junho de 86 Selvagem? Estava na praça e o resto é
história.
Passado o ano de 1986 e todo o sucesso do disco “Selvagem?”,
Os Paralamas do Sucesso foram, gradativamente, nos álbuns posteriores mergulhando
ainda mais nas referências jamaicanas e caribenhas.
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