Na musica brasileira em geral, são muito raros os casos que
driblaram a barreira lingüística e lançaram trabalhos relevantes, O álbum em questão surgiu não apenas como
antídoto a essa tendência, mas também como uma obra FUNDAMENTAL do rock brasileiro.
Dor. Muita dor. Nem tanto aquela que parece dilacerar a carne, mas
principalmente aquela que queima o coração como um ferro em brasa e carboniza o
amor despedaçado.
Há quarenta anos, Arnaldo Baptista colocou tudo isto para
fora em um álbum que soa desconcertante e atual até os dias de hoje. Era seu primeiro disco
solo, já fora dos Mutantes. Lóki ? era o sinal de que ele precisava de ajuda
para sair de um furacão de delírios lisérgicos e paranoicos com relação a uma” invasão extraterrestre” e a
dor, aquela dor, causada pela perca que ele acreditava na época ser a musa e
amor de sua vida; Rita Lee. Mergulhado na depressão, Arnaldo era a
personificação da angustiante incerteza de continuar a viver.
Gravado em terríveis condições emocionais, após sua saída
dos Mutantes, o álbum conta com a participação de três ex-integrantes (o
baterista Dinho, o baixista Liminha e Rita Lee nos backing-vocals. A gravação feita às
pressas nos proporcionou uma pegada inigualável e, dado seu estado emocional,
Loki? acabou por ser o maior legado existencial do rock brasileiro.
Arnaldo mostrou o que
significa amar até perder a própria identidade , buscar por paraísos
artificiais a partir da desintegração da alma e usos de drogas, percorrer os porões proibidos
dos sentimentos, dar vazão aos abismos da alma e anunciar os esboços da morte, mesmo
não consumada. Nessas “previsões”, ele já parecia estar ciente de seu destino consumado
por uma tentativa de suicídio em 1980.
Se, literalmente, (ao expor sentimentos) ele provou genialidade, no nível musical nada
deixou a desejar musicalmente ; ou seja, a partir de sua voz arrancada “do
estomago” e de um sensível piano clássico, ele percorre o rock de forma
eclética com maestria, indo das mais tristes baladas até o rock progressivo , passando por bossa, jazz,
funk e blues.
Em cada faixa, Arnaldo dilacera a alma, exibe uma mente já perturbada
e sem esperança. Um espírito já imerso na solidão, alucinadamente triste. Tudo
basicamente temperado a piano, voz, baixo e bateria acompanhado por seus ex-companheiros de Mutantes. NADA DE GUITARRA . Só uma salada de
rock, bossa nova, samba e MPB desgovernada.
A primeira faixa do LP, a linda balada "Será Que Eu Vou Virar Bolor?",
usando o título como tema, traça ironicamente um paralelo entre o futuro de seu
amor e o da música , ambos “ameaçados de extinção”. A seguinte "Uma Pessoa
Só", remonta a um sonho coletivo.
"Não Estou Nem Aí" é balada com ares jazzísticos em que, sombreado
pela (im)possibilidade de esquecer os "males", ele desafia a morte de
forma sarcástica. Em "Vou Me Afundar na Lingerie", um “blues pop” de
primeira ele instala a evasão absoluta
do mundo real. A instrumental "Honky Tonky" é um delicioso mergulho no
piano.
"Cê tá Pensando Que Eu Sou Loki?", desbanca a
loucura, mas não exime “o prazer alucinógeno”. Na balada ,”Desculpe “que desvenda a angústia passional de uma pessoa atormentada pelo ciúme. "
Na fragmentada "Navegar de Novo” desvenda
sua particular passagem das horas e dimensões (im)possíveis do tempo. Em "Te Amo, Podes Crer", uma balada de
amor que encarna o pranto de uma pessoa abandonada
e revela: "Dentro de algum tempo
eu paro de tocar/espero o apocalipse de então eu te encontrar", um verso
que resumiria profeticamente seu futuro. Fechando, a folk-psicodélica "É
Fácil", síntese de um amor
absoluto.
Se hoje sua obra é mítica, saiba que Arnaldo pagou muito
caro por toda essa paixão,que foi levada às últimas consequências. Emoções,
lucidez (e a falta dela) e solidão formam algumas passagens do que significa “Lóki?”.
Somos entregues a um comportamento visceral, tão doído quanto raivoso, o que coloca
o disco em um pedestal sem igualdade. Dor e angústias podem ter diminuído, ou até passado. Mas o
peso e a inspiração do álbum formaram uma das obras mais instigantes da música
brasileira.